É difícil admitir, mas estou entendendo, na prática, que certos saltos de consciência, dessas transformações que parecem romper a alma e reorganizar o mundo, só acontecem quando a gente se permite decepcionar algumas pessoas.
Não é por maldade. Não é por vingança. É que a versão de mim que eu sonho em ser não pode coexistir com a que eu fui ensinada a interpretar. E é doloroso perceber isso. Porque essa versão antiga foi moldada pra sobreviver. Pra agradar. Pra não causar. Pra ser aceita. Só que agora... ela sufoca.
Pra crescer de verdade, eu precisei e ainda preciso trair expectativas. Trair o papel que me deram. O papel de boazinha, compreensiva, resiliente a ponto de se apagar. Dizer isso ainda me pesa o peito. A palavra “traição” dói. Mas também revela. Porque no fundo, fui ensinada a acreditar que qualquer movimento que perturbe o status quo é um sinal de deslealdade. Como se ser leal fosse continuar calada, mesmo quando estou gritando por dentro.
A verdade é que, durante muito tempo, eu segui um roteiro que nem escrevi. Aprendi a agradar, a caber nos espaços, a repetir ideias que nem combinavam comigo, só pra manter uma falsa paz. Eu me tornei aquilo que todo mundo precisava, menos eu.
E quando esse molde que me protegia parou de servir, comecei a quebrar. E eu achei que estava desmoronando, mas não: era o início da minha libertação. Foi quando percebi que a transformação é um tipo de violência, uma dor de nascimento. Um rompimento necessário.
Sim, vai parecer egoísmo pra quem se acostumou a me ter sempre disponível. Pra quem se beneficiou da minha obediência. Mas hoje eu escolho a mim. E dói. Dói porque é uma troca: a aceitação de muitos pelo reencontro comigo mesma.
Eu não posso mais chamar de amor aquilo que só existe quando eu fico em silêncio. Eu não posso mais chamar de lealdade aquilo que exige que eu me abandone.
Estou me perguntando todos os dias: estou disposta a ser mal interpretada, se for o preço pra viver em paz comigo? Porque é disso que se trata. Crescer é parar de pedir permissão pra existir de forma inteira. É deixar que a dor venha, que a culpa grite, que o luto se instale pelo personagem que eu precisei ser um dia, mas que não sou mais.
E quando esse luto passa, vem a força. A coragem de dizer o que estava entalado. De sonhar de novo. De ser de novo mas de verdade dessa vez.
Sim, é solitário no começo. Quem só amava minha máscara não vai suportar minha autenticidade. Mas aos poucos, vou encontrando os meus. Os que ficam mesmo quando estou bagunçada. Os que não exigem que eu diminua minha voz pra caber no conforto deles. E o mais importante: estou me encontrando.
Não aquela que sempre dizia “tá tudo bem”. Não a que se moldava pra se encaixar. Mas a que sou quando ninguém está olhando. A que fui antes do mundo me pedir performance. Inteira. Incômoda. Livre.
E sei que pode parecer que estou queimando tudo. E talvez esteja. Mas esse fogo é sagrado. Ele não destrói ele purifica. Ele abre espaço.
Isso nunca foi traição. Isso é tornar-se.